2 de fev. de 2010

O rap não é mais o mesmo

O rap não é mais o mesmo. Mudaram a rima, a forma, o conteúdo, as letras e a tão propalada atitude dos rappers. As transformações pouco ortodoxas são feitas por geração principiante nos riscados do hip-hop e encaminha o gênero por trajeto inédito no Brasil e já muito utilizado no exterior. Uma audição rápida do CD Reconceito, do grupo do Paranoá Ataque Beliz (com lançamento previsto para este mês, mas já encontrado na Só Balanço e Pró Vinil, ambas no Conic), dá um atestado dessa outra concepção. Formado por Anderson Rodrigues e Higo e Alisson Melo, o grupo, que já tem oito anos de carreira, faz um passeio por diversos gêneros musicais, desde o samba até a embolada nordestina. Entram também o jazz e o R&B; nas 21 faixas gravadas no Q-Estúdio.

Ataque Beliz com o rapper histórico Japão: novo e tradição se entendem na evolução do hip-hop - (Zuleika de Souza/CB/D.A Press).

Ataque Beliz com o rapper histórico Japão: novo e tradição se entendem na evolução do hip-hop. "Essa mistura não foi uma decisão consciente. Ela aconteceu naturalmente, seguindo o que cada música pedia", explica o vocalista e produtor do álbum, Higo Melo. "Já disseram que nosso som não é rap. Mas, como o próprio nome diz, o gênero é ritmo e poesia. Dentro desse conceito, somos livres para experimentar", defende Melo. "Fundamentalmente, o rap é misturado com outras músicas em samplers, que usamos para fazer as batidas", observa a cantora pernambucana radicada no DF Lívia Cruz, igualmente adepta da nova onda. "Então, o rap sempre recebeu a influência de outros gêneros musicais", completa a cantora.

As temáticas também se diversificam. As letras recheadas de denúncia social são substituídas por trajetórias pessoais, narradas em letras que valorizam o esforço individual e quase nunca o coletivo: "Não basta chegar, tem que lutar, tem que trabalhar/ Não adianta só tentar, tem que conseguir/ Tem de crescer, para se levantar, sem passar por cima de ninguém/ E nem de si/ Eu vi vários falhar, eu vi vários chorar e outros eu nem vi/ Vi vários rimar/ Tudo são MCs/ Minha parte é tentar e graças a Deus, consegui", declara a MC Flora Matos, em Meu caminho, uma das faixas do elogiado mixtape Flora Matos vs. Stereodubs. Lançado em novembro passado em São Paulo, exibe influências jamaicanas de reggae, dub e eletrônico.

"O rap sempre teve muitos contrapontos. Onde moramos? Como vivemos? E como a periferia era vista pela alta burguesia e pela polícia. Bastava ser do contra. Você tinha de morar na favela, ser negro e do candomblé, mas foi mudando com o passar do tempo. Não adianta ficar parado, ficar se vitimando sempre. 'Sou pobre, vou morrer pobre e a polícia vai vir aqui me bater e tal.' Acho que o rap está acordando para isso", opina Japão, vocalista do Viela 17, de Ceilândia, veterano com 20 anos de carreira, que já mudou o estilo nos recém-lançados Lá no morro e Rap com ciência (projeto feito com alunos de escolas públicas do Distrito Federal).

Afastado do hip-hop desde o começo da década, o ex-vocalista do Câmbio Negro X não encontra espaço dentro da nova configuração: "Rap sempre foi conscientização, protesto, politização e hoje está enveredando por um caminho que é a própria cova. A música tinha que ter conteúdo. Independentemente do que se falava, você precisava ter embasamento. Muita gente criticava tanto o pagode e o axé, mas o que se faz hoje é música de entretenimento, para dançar. Eu não gosto desse novo rap". "Nós temos ótimos comediantes no país. Então, não precisa de rap engraçado. A situação política e social só se agrava. Mas decidiram que isso não vende mais. A rapaziada quer falar de carrão, de limusine, de mulher da bunda de fora e por aí vai", completa o veterano. Os iniciantes se defendem: "O importante é escolher o seu papel. Meu grande protesto é esse. Mostrar que a pessoa pode ser livre e escolher seu próprio caminho", finaliza Lívia.

Como eram as letras

"Agora irmãos vou falar a verdade/ A crueldade que fazem com a gente/ Só por nossa cor ser diferente/ Somos constantemente assediados pelo racismo cruel/ Bem pior que fel é o amargo de engolir um sapo só por ser preto/ Isso é fato/ O valor da própria cor/ Não se aprende em faculdades ou colégios/ E ser negro nunca foi um defeito, será sempre um privilégio/ Privilégio de pertencer a uma raça que com o próprio sangue construiu o Brasil/ Sub-raça é a p%u2026 que pariu!"
Sub - raça, Câmbio Negro

"Se joga da mira que a guerrilha está engatilhada/ A ira dos manos que você traiu sai como uma rajada/ Aqui na favela para mim de nada tu é útil/ Se joga ladrão, pois não quero ver a sua cara inútil/ Quando cola com os manos, quer ser boa pinta, fazer seu papel/ Mas aqui na favela já foi condenado está no banco dos réus/ Paga de anjo, diz para todos que é mensageiro da paz."
Batalha sangrenta, Viela 17

Como elas ficaram

"Protagonista escolhi o meu papel/ Me orgulho das conquistas, nunca esperei cair do céu/ A vida é selvagem, difícil de domar/ Mas eu sou amazona e estou pronta para laçar/ Sou eu quem cuido da cria, sou eu quem vai a caça/ Leoa na selva fria, sei que a carne é escassa/ E eu estou na cidade, onde carne é grana/ Capital da vaidade, sem piedade e insana."
Protagonista, Lívia Cruz

"Por esquinas da vida clandestina eu vou caminhando em corda bamba, sem saber se amanhã terei vida/ Mas, assim vou/ Caminhando na cidade, na malandragem/ Quando posso vou prum samba de raiz/ Melodiando num lugar excluído desse país/ Pois apesar do sofrimento, muita gente aqui é feliz/ Não tenho vergonha de onde sou/ E o que sou hoje é pelo amor que recebi."
Ela me ensinou chegar, Ataque Beliz

Fonte: Correio Braziliense

Márcio Luiz

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Postado por Hip-Hop de Fato no Portal Hip Hop de Fato em 2/02/2010 04:00:00 PM
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